O Liquidificador

Hoje, o liquidificador quebrou! Seria um assunto banal se não tivesse atrás de si uma história que reveste o acontecimento num fato de grande importância. É claro que liquidificadores quebram um dia, até por que, neste mundo capitalista, nada mais é feito para durar. Mas não é esta a questão! A questão é que, algum dia, quando menos se espera, o “um dia” aparece em nossas vidas, como “o dia”. E, no dia, a primeira coisa que nos vem à mente são as perguntas: - por hoje?, por que comigo?, por que agora?
Não há resposta que justifique nenhuma delas. Quando um liquidificador quebra, é sempre um transtorno. Principalmente por ele só quebra na hora que estamos usando para fazer alguma coisa sólida ficar mais líquida. E isto é um fundamento para muitas coisas do dia a dia. Afinal de contas, para que os liquidificadores foram feitos? Para liquefazer. E, quando ele não funciona, nada se liquefaz.
Domingo, ontem portanto, soltei o desejo de saborear novamente uma torta de maçã ou de banana, dependendo da fruta de ocasião, saudoso que estava de outra torta que ficou um prior nas cotidianas experiências da minha amada na cozinha escura do nosso apartamento. Fato raro por que não gosto de doce. Muito menos ainda de torta. Mas aquela torta estava especial e a distância que mantenho das guloseimas açucaradas, algumas vezes, estreita-se contra a minha vontade. E, acabou por se expressar na forma de um desejo suspeito, tímido mesmo. E, aí começa a montar-se o quadro do desastre do liquidificador.
Hoje pela manhã, feriado colegial e comercial, mas não universal, saí para o trabalho pensando em cumprir mais um dia de jornada. Meio do dia, eu recebo um telefonema avisando-me da tragédia: quebrou-se o liquidificador! No outro lado linha, um pouco de choro para dar o toque feminino, uma rápida e intensa fúria passional que somente os signatários de Escorpião sabem encenar e uma batida de telefone na cara para dar sentido ao tamanho daquele problema. Eu, canceriano que sou, continuo sofrendo até agora... quase seis horas depois do transcorrido, preocupado não com o liquidificador, mas com o sofrimento que ele tinha ou estava ainda causando na minha amada.
Eu sei que não posso mudar o passado. Também estou ciente de que não será um novo liquidificador que sanará a dor de não ter concluído uma obra de arte por causa da incapacidade de liquefazer algo que era absolutamente necessário ser liquefeito. Eu só choro pelo choro da minha amada. Eu só sofro pelo sofrimento da minha amada. E, é por isto que eu escrevo sobre a perda do liquidificador como se fosse uma tragédia de enormes proporções. Pouco importa se não degustarei a torta que num tímido arroubo saiu do pensamento somente por que o vento roubou-me palavras da boca. Importa-me sim, a satisfação da minha amada, da minha pequena, linda e maravilhosa amada.
Amanhã, teremos um outro liquidificador. Hoje, trocaria facilmente a torta por um beijo e um sorriso. E, talvez sirva de consolo - para ela - saber que o liquidificador embora seja capaz de provocar lágrimas, aborrecimentos, prejuízos e frustrações; não é capaz de manter este baixo astral por muito tempo, principalmente, por que nós estaremos preparados para estes destemperos das máquinas que, algumas vezes, atrasam nossos sonhos, mas não têm substância para superam nossos desejos de que eles se realizem.
Hoje, quebrou-se o liquidificador. Dane-se o liquidificador! Podemos comer em vez de beber e comemorar a chegada do liquidificador novo que teremos amanhã. Basta alguém anunciar com tristeza que “O rei morreu” para que a turba, impulsionada pelo instinto de continuidade, faça brados de “Viva o novo rei”. E, é com este espírito de perseverança, que eu lembro com carinho que alguém disse um dia que o show tem que continuar. E, decididamente, a minha amada está aí e faz parte do meu show. O liquidificador?! Ele não faz parte do meu show. Dane-se o liquidificador!

15/10/2001